Um assalto ao café

 

não adormecerá o coração

numa porção de sombra

chamada medo.

[das anotações do autor]

 

Acabei numa casa de banho feminina, por engano. Andava aos tombos no mundo. As minhas relações amorosas eram um fracasso. Tudo que escrevia dava remorso. Precisava de meia hora num banco para concertar os ponteiros da minha existência.

Atravessara o balcão do café com a cabeça em Martes. Escutava Angelique Kidjo. Dos velhos escutadores. Ficavam enrolados no bolso das calças. Entrara com a bexiga quase a rebentar. Adouma, de Kidjo arrepiava-me. Lembrava pássaros a golpearem o céu, ou uma perseguição de animais na selva.

Não tinha os habituais urinóis. Lembrei-me de A Fonte, do francês Marcel Duchamp. Soltei um sorriso e por instantes esquecera-me do que me arrastara e dos remorsos.

Haviam pequenos quartos perfilados. Portas fechadas, algumas. Pálpebras semicerradas, outras. Atravessei a segunda. Puxei a tranca. Parecia a coisa mais frágil do mundo. Foi lá onde urinei.

Ia sair quando ouvi a porta estrondar. Abriu e fechou rapidamente. O som da respiração ofegante atravessou-me os tímpanos. Puxei os fios dos ouvidos. Tive a sensação de que todas as mulheres na terra respiravam.

Destranquei a pequena porta. Vi-lhe o rosto. A cabeça encostada à parede. Prostrada. Tremia. Sentada no chão. Parecia sozinha no mundo. Quando apareci, provavelmente tínhamos ficado os dois. Naquele nosso mundo: a casa de banho.

«Não me mate, por favor. Faça o que quiser. Não me mate!» - Disse. Sua voz tremia e parecia escapar de um comboio em movimento. - «Por favor, senhor!»

«Esta casa de banho é para senhoras?»

«Sim, senhor. Por favor não me mate.» - Repetiu aquele seu «Não me mate» com as palmas das mãos esticadas a cobrirem o rosto como se fosse um coro. Olhos cerrados. Cabeça contra a ponta do seu joelho. A saia deslizava devagar, como se a pele se descascasse de si. - «Não me mate.» - Repetiu.

«Desculpe-me. Entrei por engano…»

«Aqui fora» - disse com o dedo virado para a porta - «Tem cinco homens armados. Estão a pedir dinheiro à senhora do caixa!»

«Há quanto tempo?» - interroguei como se pudesse mudar o rumo das águas

«Sei lá… a pouco tempo. Estão todos mascarados. Estou com medo.»

«Acalma-te, acalma-te, senhora» - disse enquanto me aproximava da porta.

«Não, não por favor. Não abre.» - Disse com os dedos segurando minhas calças.

Naquele instante notei o quão belo era o seu rosto a transpirar. Parecia uma lua no Verão. À noite. A luz que se estica madrugada fora. O medo a tornava um pássaro sem ninho, sem ramo. Cravei o meu olhar sobre ela por longos minutos. Para além do seu rosto, havia uma segunda coisa que me roubava a atenção: o decote. «Como fui capaz de não conhecer uma mulher assim em toda minha vida?» - Pensava.

«Desculpe-me» - disse ao largar as minhas calças. Soltei um sorriso e permaneci com a cabeça inclinada, com os olhos quase a tombar.

«Filho da mãe! Esta merda não tem chave.» - Disse ao deixar aqueles pensamentos evolarem-se.

«Então?»

«Se não tivermos muita sorte podem cá vir»

Segurei sua mão. Fomos ao último compartimento. - «Fiquemos aqui até tudo acalmar»

«É muito apertado»

«É muitíssimo apertado. Agora fale baixo ou cale. Se não quiser morrer, é claro»

«Se não quiser?» - Perguntou ainda mais assustada.

«Sim. Se não quiser.»

«Onde o senhor já viu alguém que queira morrer?»

«Não importa. Como a senhora se chama?»

«Maíza» - Disse. Uma expressão de vergonha e medo adocicou o seu rosto. Empurrou com cuidado a tampa da pia e sentou-se contra ela. - «Sinto-me exausta. E cheia de medo»

«Também estou com medo.» - confessei - «Achas que eles ouviram a porta bater.»

«Eles estão a procura de dinheiro e não de portas que batam.» - Disse ela, mais ou menos segura.

Tomava um café. Levantou-se. Precisava lavar a cara. «Comecei por ouvir a porta principal bater com muita força», depois foram as gritarias. Os homens armados mandaram todos ao chão. Dois deles foram ao caixa. «Dá todo dinheiro que tem aí». Maíza descalçou-se e arrastou o corpo leve como uma folha a adejar. Entrou. E se deixou cair onde a encontrei. Isto foi o que ela presenciou. Passava das dezasseis.

 

***

Tinha os ossos dormentes. Maíza adormecera. Era noite. Não sabia se abanava seu corpo ou roubava um beijo. Não sabia se saía dali e esquecia tudo aquilo. Não sabia se a esperava fora dali enquanto não acordasse. As mulheres são os únicos seres que põem os homens em dúvidas permanentes. Os ladrões não teriam demorado tanto. Era noite, quase. Nem som de polícia.

Caía uma chuva triste. Chegava trémula, aos pingos. Estava de pé. Fitava o corpo dobrado sobre a pia. Lá fora era silêncio. Naquele momento acreditei que no mundo haviam apenas dois seres.

Destranquei a pequena porta. Abri a segunda porta. Ninguém estava ali. Nem assaltante, nem polícia.

A porta principal estava quebrada. Atravessei. Segui à esquerda. Cruzei a estrada. Segui o meu rumo. Aos tombos.

Nunca mais vi Maíza na vida.

 

Matendene, Março de 2020

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