Sobre Toda Escuridão

Um homem entrega-se por completo a uma depressão profunda, depois que sua mulher, Susana, morre, em circunstâncias inesperadas, numa queda aparatosa de um prédio. Entre o presente e o passado, tenta se erguer e reconstruir a sua a vida depois do amor frustrado, ou culpa percutida. Os vaivéns da memória, as alucinações e todo o pensamento trágico o perseguem. As lembranças reconstroem um triângulo amoroso, com a entrada de Filipa, uma mulher que se dedica para o ajudar a levantar. Mas nada é tão simples como parece. Quando tudo parece tomar algum sentido, ele toma uma decisão difícil e inesperada.

Excerto da novela

A sua ausência atordoava-me. Era um homem triste, mergulhado na infinita escuridão. Caminhava aos rastejos, atormentado pelo rumor íngreme dos insectos. As surras do vento contra os caixilhos de madeira escura, perturbavam o músculo cardíaco. O corpo frágil, transformara-se em campo fértil de lamúrias. Noites, prantos. Era um ser melancólico, perturbado pelas sombras do remorso. Via as coisas na turbidez da solidão. Tudo ao avesso, no ritmo impaciente e regular. Observava incansável o oco entre as paredes. Via tudo, via nada, imensidão, nuvem errante. Coração a latejar, úlcera ao sol. Mãos trémulas, força do tufão a atravessar-me as falanges.

Era final de tarde. A queda sucedeu. Suzana morreu. O sangue soprado por uma substância vigorosa, escorreu denso e desordenado pelo chão. Corpo franzino. Boca aberta. As vozes. As vozes em saltos pelos tímpanos, as vozes das aves, as vozes do silêncio, do vento, dos homens, das mulheres, as vozes das crianças. A voz do Quio, de calças azuis e camisa amarela, o grito térmico da Tita, o seu espasmo, o medo. O tropel em marcha se abeirava. A respiração. O hálito acabado. O hálito da tua boca Suzana! Meu corpo tremia sobre o curso do sangue. O gato ameaça rasgar os vasos dilatados.

*

O joelho frio, encostado ao peito, estremecia. Cobria-me um lençol cansado, imundo e fedorento. Permanecia de cuecas toda a tarde, as marcas da urina pelo soalho, o cheiro intenso pelas narinas adentro a perturbar os pulmões. Ouvia vozes chegarem de um universo remoto. 

Nessa época dormi uma eternidade. Na posição fetal encontrava a pureza da ternura. A realidade era algo fantástico. Os sonhos ardiam na brasa do Inverno, enchiam o corpo de qualquer coisa, ar a levantar um balão. Meu corpo era um balão. Estava ali, trancado na boca dos sonhos, a boiar, seguindo as coisas mais inusitadas que se passavam dentro da minha cabeça: havia um comboio que atravessa os tímpanos, um corpo que me impedia de adormecer, uma voz que me combatia, severa, cruel, mas também uma canção – ordenava que fosse atrás de uma corda de degolar caprinos.

O corpo sucumbido, rastejava, réptil. Estava desfeito. A atmosfera de luto. O silêncio cruel cravado com vigor de uma lança. A escassa luz a alastrar-se com dor e renitência pelo quarto. O combate incessante contra algo desconhecido, mas tenebroso. Destroços do que ainda havia em mim, teriam se evaporado, não fosse a generosidade com que a minha porta foi empurrada naquele dia. O vulto emergiu com a expressão de um busto aflito. Pronunciou meu nome, como quem diz “Deus”. Sorriu. Imaginei os seus rins naquele instante. Seu corpo era belo e manso, entretanto, toda a força das coisas frágeis estava por romper da ponta dos seus dedos, ou das omoplatas.