A Falsa História do Roubo de Cristo na Vila Algarve
Um
Cristo está de mãos atadas. Para cima. Apontam o tecto. Engano-me. Cruzadas, é assim que se vê. Um “X” mal feito pelos braços. As sombras descem o corpo raquítico. O olhar piedoso de pedinte. O prego faz um orifício nas palmas das mãos, perpassa como um estilete que atravessa rápido o músculo cardíaco. Um projéctil. Quente, talvez. Esmaga-as à madeira por trás do homem. Os pés igualmente cruzados. Pregados como apenas ocorre em um sonho tenaz. Parece vencido, não pela dor, mas pela lassidão que o parece perseguir. Em seu rosto vê-se uma expressão inesquecível de um animal abandonado no deserto, onde, apenas as aves de rapina sobrevoam, a milhas, como se procurassem algo de que temem.
A
Dois homens farrapentos estão encostados ao muro estafado da Vila. Remexem uns sacos. Apanhados algures pela cidade. Não são homens. Zoom. São adolescentes cujas expressões parecem castigadas por um animal rancoroso. Não os conhecemos pelos nomes. Para que o leitor não se aborreça, vamos chamá-los: Rogério e José. Sabemos que Rogério pode ser traduzido para “lança gloriosa”. José, não nos é estranho, está presente na mitologia religiosa, ele é “acréscimo do Senhor” ou “Deus multiplica”. Nem os significados, nem os nomes têm a ver com estes dois metidos em lixo, como quem procura restos de si. Nada importa. Os nomes que lhes atribuímos, por ironia da estória, não ajudarão em nada. Prosseguimos assim para que o exercício de abstração do leitor seja menos doloroso.
I
Tinha-lhe dito que organizasse as coisas para o roubo. Duas horas antes. O sol inclinara-se. Mais uma vez, Almeida fazia as coisas como o seu espírito lhe ordenava. Comprei uma faca de degolar cabritos. Um saco e uma corda. Não era a primeira vez que o faríamos, no entanto, transpirava de um nervosismo de cão. Meu primeiro roubo foi na Fortaleza de Maputo. Um fracasso. Quando íamos a sair havia polícia por toda extensão. De todos, fui o único que escapou. Não sei exactamente como. Há Deus para ladrões? Não precisa responder. Veja porquê: faz dois meses que também escapei de um roubo no Museu da História Natural. Os outros? Nunca soube do paradeiro. Há Deus para ladrões? Na Igreja de Santo António da Polana, roubei, sozinho, uma estátua de porcelana, de Cristo, com a mão levantada. Há Deus para ladrões?
Dois
As obras de arte têm a tarefa de aliviar os nossos espíritos. Aquela parecia pesar no peito da parede. Como uma gravidez mal localizada. Ninguém sabe quem o pintara. A assinatura parece um borrão, cocó-mal-feito. Vê-se apenas um 97 mal escrito. Mete dúvida quando olhado duas vezes.
Está fixa na parede de um corredor empoeirado. Abandonada como uma doença. Cristo está em primeiro plano, e, parece, às vezes, faz uma expressão de um homem entediado que pede alguma coisa e não lhe é dada. Vê-se o olhar cândido, o rosto absorto inclinado para o ombro. São cento e trinta e cinco por oitenta e cinco centímetros de rectângulo.
B
Afundam os braços no meio dos sacos. O mais alto é o mais velho. Entretanto, quem acha a carne é o mais novo, o de calções e uma camisola que lhe chega até ao umbigo. O mais velho faz força para lhe arrancar o saco. Ele grita. Empurra-o. Ninguém vive na Vila, para além do Cristo e dos pardais que sobrevoam em torno das ruínas, como vigias de uma tumba sagrada. E ouvem-se os gritos de José e os grunhidos de Rogério. Lá para cima: Hotel Terminus, lê-se. Nem Rogério, nem José olharam para lá. Nunca foram à escola. Não sabem ler. Lêem é o que se vai comer hoje, amanhã e amanhã e outro amanhã. E outro, ainda.
II
Os caminhos, quando os queremos rápidos, demoram a chegar. Almeida estava metido numa canção incompreensível. Uma oração, talvez. Descemos a avenida Eduardo Mondlane. Pusemo-nos a caminhar quietos. A cidade corria como água. O saco metido no meio do braço sofria fricção com a costela.
Na Avenida Mártires da Machava habitava um estranho silêncio, sombrio, talvez. Um homem alto vinha atrás de nós. Reduzimos o passo. Ele atravessou para a margem contrária. Entrou num carro de aspecto cansado.
Três
Ninguém soube, durante anos, da presença do Cristo ali. Ninguém o imagina, metido em nuvens de poeiras, com os pássaros a sobrevoarem o tecto da casa. Meta ouro numa pocilga que ninguém será capaz de o encontrar. É assim o Cristo na Vila. Fora, o colorido dos azulejos em revestimento fulge. O azul, o creme, embatem-se e criam um ar sacro, que não passa esquecido, ao olhar atento de um padre lusitano.
C
Estão serenos. A solução que Rogério e José encontraram, foi dividir por igual a carne. Afinal, estiveram igualmente dedicados à empreitada de procurar a refeição. Saboreiam, felizes, como duas mulheres acabadas de chegar ao paraíso.
III
«Acha que Cristo ainda está lá, mano?»
«Só Deus, sabe»
«Dizem que ali na Vila os fantasmas portugueses vivem ainda.»
«Relaxa, puto. É tudo mentira»
«É para proteger Cristo, então!»
«Ninguém sabe que ele está lá.»
«Craveirinha, Knopfi e Malangatana, foram presos aqui...»
«É boato. Desde quando sabes da história?»
«É preciso conhecer, antes do roubo, não és tu que dizes?»
«Um bom ladrão fala pouco. Cala-te»
E murmurou.
Quatro
O lixo acumula-se por todo o lado. Cresce. Sacos espalham-se pelo chão. Latas também. Ninguém imagina o que acontece ali. Nem sobre os mendigos, nem sobre as prostitutas.
D
É noite. Entram para dentro da vila. Sobem as escadas. Caminham exaustos. Entram pelo corredor. Os vão das janelas são a porta do mundo. Entram num dos compartimentos, o mais próximo do corredor, o mais amplo. Estendem um saco. Põem-se sentados. Conversam qualquer coisa. Coisas de meninos de rua. Não falam de telenovelas, nem de livros. Nunca viram um smartphone. Sabem da presença de Cristo ali, ao lado. E rezam quando podem, para que ele se lembre de fazer algum milagre. Rogério e José estão quietos, como a própria escuridão a descer o corpo quieto da noite.
IV
«VILA ALGARVE» ergue-se por cima do portão preto. As Avenida Mártires da Machava e Ahmed Sekou Touré, ali se cruzam. A luz branca da lua resplandece. Faz frio. Os pássaros nocturnos circulam por cima da casa. Dei instruções ao Almeida. Empurramos o portão. Não abriu. «KVL E» estava escrito na parede, por fora. Lemos também «87 SETEBROdIDAS25COCOMAputo», na parede.
«O que isso significa, mano?»
«Cala-te e salta logo.», disse em tom áspero, empurrando-o por trás.
Almeida fez um grunhido e caiu para dentro do recinto. Atirei o saco e saltei. Entramos na casa. Subimos as escadas. Fomos directos para o corredor indicado. Seguimos a barra preta no chão que ia até Cristo. Tal como nos explicou o Doutor. É assim que lhe chamamos: Doutor ou doutor. Tanto faz. Não sabíamos o seu nome. Tinha negócios pelo país e aparecia sempre na televisão. Quando precisa de alguém que roube coisas neste tipo de lugar, procura-me. O próximo será na Casa de Ferro. Imploro que mantenha segredo.
Ele não estava. Paramos demoradamente. Descalços. Almeida fez um gesto de pergunta. Inaudível. Como há muito roubamos juntos, sabia, a pergunta era:
«Onde está Cristo?»
Fiquei nervoso. E comecei a transpirar. O corpo em brasa. Íamos roubar o quadro. E não estava. Aguardamos instantes em pé. Vi Cristo um pouco afastado dali. Sorri. Apontei-o. Almeida sorriu com exagero. Caminhamos. Nervosismo e ansiedade. Uma explosão, o coração a ribombar.
Estávamos a poucos metros, quando as coisas mudaram. Um som parecia crescer. Ouvimos passos repetidos. Ganharam corpo. Olhei para Almeida. Havia-se virado. Pronto para voltar. Seus olhos de um tamanho assustador. Os passos incessantes pareciam multiplicar-se. Virei-me. Corremos com tudo. Atirámo-nos, rolando pelas escadas. Galgámos o muro como animais e deixámos para trás o saco onde o meteríamos. O roubo não aconteceu. Acreditámos que Cristo ressuscitava.
Até hoje ninguém o tirou da parede.
Texto publicado na Antologia “Olhos Deslumbrados”, FFLC (2020)