No céu mais escuro de Dombe
"Foram três dias e noites que ficámos em cima de uma árvore", relatou à Rádio Moçambique um residente de Dombe, povoação a cerca de 30 quilómetros do Zimbabué, na província de Manica.
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Quinta-feira
Naquela tarde o sol se adiantara em demasia. O céu toldado de um vermelho triste. As libelinhas esvoaçavam circundantes à luz que incendiava a sala com uma força abismal. Carregava o prenúncio da descensão de um corpo celeste. O que não ocorreu.
Passara aquele final de tarde com os olhos cravados nas páginas do Diário de Notícias, cujo cheiro agitava-se dentro dos meus pulmões. Enrolava-me o estômago com a mesma audácia e presteza com que se desfaz de um papel inútil. A sensação sincera era de que, algo fosse pular, por alguma razão incompreensível, para fora do meu corpo.
Inventariava o meu passado, naquele exercício penoso de ter as mãos metidas em papel. Como se lesse um histórico sombrio de minha própria existência. A televisão passava qualquer coisa. Inútil. Ouvia os sons distantes, como um dirigível metido em nuvens, subindo incansável, como se buscasse alguma salvação no espaço para algo terrível por vir.
Aqui, em Dombe, Sussundenga, a noite foi a mais escura que vi. As estrelas estavam ocultas. A lua falecera algures. «Os deuses devem ter abandonado este lugar», pensei. Pela janela o manto escuro se estendia infinito. Pela primeira vez descobri que nada é mais infinito que a escuridão.
Deitara-me, junto de Andaluzia, a minha mulher. Cujo sono era, para si uma presa fácil. Bastava-lhe cerar por instantes as pálpebras. O corpo entregava-se à boca da letargia naquela posição fectal, como uma solteira metida nos efeitos da cruel solidão.
Tinha por hábito sonhar. Sonhava sobre as nuvens. Sonhava a matar pardais. A entoar hinos fúnebres. A enterrar cães. Falara com o pastor. Disse que rezasse e parasse de dormir como um morto. Não conheço quem não durma como um morto na Beira, mano.
Fui engolido. Começava a sonhar qualquer coisa alegre. Foi espantada pelo estrondo do céu. A chuva pregava-se contra o tecto da casa. O vento nervoso batia de todos os lados. Despertei como se acordasse de um pesadelo e emigrasse para o outro. A casa metida numa escuridão de dar medo. Andaluzia despertara quase aos prantos.
«O que se passa?», perguntou com as mãos trémulas.
«É chuva», respondi. E saltei da cama. Era toda a escuridão.
Pela janela via-se como os objectos esvoaçavam. As árvores caiam de boca para a terra. Os gritos. Próximos e distantes. Atravessavam-me os tímpanos. Com uma força incomum. Não tive dúvidas que Dombe ia desaparecer naquela noite.
«Levanta-te», gritei no meio a confusão.
Seguiu-se um estrondo. Dentro da casa. O flato a penetrar pela janela. Os vidros a quebrarem. As gotas a baterem com vigor contra os nossos corpos.
Fomos pelo corredor. Seguiu-se outro estrondo. Algo caíra por trás. Como se vindo do céu fosse enviado para dentro da nossa casa.
Era uma luta hercúlea, mas inglória. Circulávamos nervosamente pela casa. Uma tentativa de sobreviver à invasão da torrente. Criaturas que pululam num chão de plasticina, éramos. Entregávamo-nos à luta, com os corpos a tiritar de medo.
O frio das águas já o sentíamos pelo joelho. Andaluzia estava fria. Tinha-a encostada ao meu peito. O coração ralhava. Arrastei um conjunto de blocos quebrados para junto de nós. Galgamos, como se nossa única salvação estivesse ali.
«E o celular? Precisamos de saber da mamã!»
Fez-se soltar. Saiu destemida do corredor. Apalpava as paredes como se a cegueira lhe tivesse chegado com a chuva. Caminhou dentro do frio da água. Como se alguma força abstracta guiasse o seu corpo na escuridão. Ouvia ecoar seus passos dentro da água, como se caíssem pouco a pouco pedras a cada passo seu.
Um estrondo abafou tudo.
Sexta-feira
Olhei para tudo com dor. Segurava o corpo invisível de Andaluzia pela mão. As pessoas corriam de um lado a outro. A força do medo caminhava em simultâneo com os passos das pessoas. Como se nada mais valesse à pena. Como se tudo fosse inútil. Para mim tudo parara. A terra dentro da água. O choro de uma dimensão cósmica. Olhei para o horizonte. Vi o céu nas águas. Tudo parecia nada.
Hilário deu uma pausa. Chorou. Um ruido suave aproximou-se. O auscultador do telefone foi silenciado. Hoje falamos, sempre que ele pode.
Publicado na Antologia “Memórias do Idai”, Fundza (2020)